o gosto salgado do mar de lágrimas banhado em sangue

criança e o sentimento de não estar totalmente. não sabia dizer, só sabia calar. a vida um não-lugar, e por nada ter, não tem nem mesmo recordações, nenhum projeto. perdido no umbral do deslocamento do sujeito. o ensimesmamento, o gesto de curvar-se sobre si mesmo, o rígido corpo um cilindro jogado no vácuo, flutuando sem oxigênio, sem pensar no ontem nem no amanhã, definhando.

crendo em deus, concentrando a fé em seu deus, postura atônita e absorta, toda a energia idólatra delirante revertia-se em uma vontade, o ruído de uma voz quase imperceptível vinda do de dentro: “vá pegar eles!” estágio máximo e enfurecido do transe – mórbido mantra.
ele levanta decidido e extravagante e vai… vai predestinado a cumprir sua resignação, move-se lentamente, irreversível.
“sim! as virgens me dariam o banho prometido.”
conseguiria limpar o nome que há tanto não lhe pertencia. nos meandros de um labirinto escolheu suas musas uma a uma, as guardiãs do paraíso… o caminho. nele, seria pleno. o presente feroz e crônico que se realiza no futuro. o último círculo. acordaria do sono da morte e iria para a vida.
a escola, duas armas, 32 e 38, a chuva de balas… e ele é visto rindo… ele que nunca é visto rindo, mas desta vez, era deus, soberano de tudo sobre todos e acima de todas as coisas. era o seu deus. estava possuído, em sua força nada o ameaçava… foram dez virgens, escolhidas friamente. matou também um garoto, todos mortos com tiros na cabeça ou no peito. gozava a sensação narcótica da vingança, o sabor de ter tudo nas mãos. obscuro numa espécie de bolha era ignorante ao grito aterrorizado das crianças.
quando os policiais chegaram foi tocado por uma sensação muito estranha, quente, leprosa, olhou em volta e percebeu e sentiu pânico de ser quem era. teve medo de seu destino, correu atirou atirou atirou. dois tiros acertaram seu peito, caiu no chão e foi se arrastando para um canto da escada, achou um vidro que dava para ver seu rosto, estava podre, vermes brotavam dos olhos e lhe corroíam a pele em decomposição
diabo diabo diabo… enfiou a arma em diagonal no céu da boca e pá…
encontrou a si mesmo
Nota da autora: Quinta-feira, 7 de abril, logo cedo. Escrevi esse texto para nunca mais esquecer esse ato de terrorismo doentio e cortante
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Castelo das águas

Em baixo da Baía de Guanabara, existe um Castelo de Pedra. O castelo surgiu com pedras gigantecas e cinzas.

Lá viviam crianças que ninguém nunca tinha visto.  As pessoas diziam que eram fantasmas.

Conta a lenda que se uma criança do mundo real quiser chamar as crianças fantasmas, ela tem que olhar para água e ver seu reflexo nela, feito um espelho, e depois cantar a quadrinha.

“Castelo de pedra

que tem sob as águas

me Leva pra ver

as crianças macabras” (aumentando o tom)

Uma noite, estava chovendo muito, muitíssimo. Trovões Trovoadas Raios. Tudo estava tremendo.  O vento uivava e a lua estava cheia, clima perfeito para libertar as crianças…

Perséfone andava sozinha pela praia da Boa Viagem. Ela adorava andar sozinha por ai, sempre desobedecendo a sua mãe.  Foi quando de repente, perto da ponte que leva à igrejinha, começou a ouvir uma música bem baixinha:

“Castelo de pedra

que tem sob as águas

me Leva pra ver

as crianças macabras” (aumentando o tom)

E a música foi aumentando até se fazer um estrondo e a ponte se transformar num enorme escorregador de pedra. Perséfone foi engolida pelas águas e num rodamoinho foi parar dentro do castelo de pedra.

Estava tudo escuro, úmido, suado o chão trepidava… Perséfone ficou com muito medo. Pensou em explorar o lugar, foi andando sem saber ao certo onde pisava, parecia não ser o chão.

Ela logo esbarrou num chafariz gigante de pequenos pontos de luz. Era mágico, lindo e iluminado. Percebeu que seus cabelos estavam caídos para cima, ou para baixo…  A menina entendeu que estava andando no teto. Resolveu engatinhar, pois assim ficaria mais segura. Subitamente ouviu uns passinhos que vinham distantes lá do chão.  Um morcego passou por ela, que se esquivou e tropeçou numa teia de aranha.  Perséfone começou a espreitar os passinhos para saber de onde eles vinham. Eles foram ficando mais densos, mais fortes, mais próximos e… BUUU

 

 

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estarindo sendo

(foto: Daya Gibeli) 

quem sou enxerga o duplo das coisas estáticas. a sombra do ser que não é.

Caleidoscópio de coisas macabras e multicoloridas, transgressão do além de um além.

Aquém desse mundo parado, perpetuo-me em lugar que de corpo permaneço e de alma estremeço; do avesso e vice-versa.

Viagens infinitas pela janela do mundo. imagens disformes, reescritas, atadas…

Deliberada, enfim, deixo caminhos do passado, demolidos logo atrás de passos embriagadamente firmes.

Sem saber ao certo quanto é? o que vale? um aprendizado, subjugado, alado, salvaguardado.

Vida de inseto; vivo no teto, grudada, com pernas minúsculas, de cabeça para baixo ou para cima, não sei.

Só sei que questionam: à que conclusões, invenções, ilusões, intenções; no caldeirão maldito de todos os “ões”

grilhões de distorções forjando conscientizações.

Morando dentro de mim há um vão inconsumível, fantasiosa lacuna de rachadura espumosa, queda de bolhas: a norma do ser e o direito do dever; estas transportadas pelo plasma como qualquer hormônio (des)regulador.

Só me resta o “querer” soterrado em terra improdutiva, desvairada astúcia do homem, que pensa que é, mas é apenas a sombra do que não é…

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Como pode um peixe fora d’água?

É castanha do pará, açai pra mastigar, farinha de tapioca, suriá no carimbó, carimbó no siriá

Venho de Belém…

Emocionei-me, inestimavelmente, perante paisagens tão sossegadas, tão demarcadas por uma imensidão de águas marrons, que contrastando com a terra de um outro marrom, simulavam a fluidez do chão. Um chão fértil, agraciado pelas frutas de todos os cheiros, gostos e cores. Frutas que tornavam nossos caminhos deliciosos e cheios de texturas. Texturas.
Pensei nisso de amar as texturas. De morder a suculenta carne de um caju, ou abrir a vagem do ingá para chupar suas admiráveis frutas minúsculas, que vinham aos montes, tornar-se-ia, quem sabe, uma obsessão.
Poderia viver ali para sempre, mas nem todo o sempre me faria entender o que era viver daquela vida. Acordar naquele universo, aonde a modernidade chega esmagadora, impondo à casas engraçadas, sem portas e nem janelas, um aparelho de televisão a cores divinizado num altar e uma roupa no crediário.
Geladeira? tem não! é peixe com açai, farinha de mandioca e camarão do matapi
Banheiro? duas moitinhas à direita e prummm
Diziam que a vida era triste…
E curar a melancolia com uma realidade inalcançavel? Não é triste? É patético!
Arrebenta os nervos, porque eles nunca saberão se existe um mundo para compensar aquele. Aquela miséria poética, aquela miséria em que o sol nasce e se põe numa imensidão de águas marrons, cristalinas e doces, tão doces como os peixes que a habitam, e que não sabem mais nadar.
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não tenho mais pele

Não tenho mais pele
só me resta o ressecamento
do rosto entrevado pelo tempo

É madrugada… mais uma vez
recebo a visita da obstinada companheira
que me corta as pálpebras em absoluta solidão
Minha estrutura de homem cai comum chiado
a ressonância insuportável das cordas

Deitado em octaedros de pedras
Iludido por um fino lençol verde musgo
Não consigo, tenho que me manter acordado
Levanto arrastando um pouco o lençol
Abro um livro com uma capa de pessoas azuis, um pouco estranhas, derretido, escorregadio.

Uma delas aspirava um cigarro enchendo os pulmões, de maneira que seus seios avolumavam-se por sobre o decote de renda portuguesa; as pernas cruzadas, alinhadas em diagonal.
Aaah (gemia! e como) desenvoltura singular, num voluptuoso biquinho, tragava magistralmente o cigarro

Tinha uma piteira enorme e negra.
Sempre tive esse sonho: uma piteira enorme e negra.
Dizem que é coisa de mulher!
O charmoso mistério da mulher está no cigarro… ou na piteira?

Uma vez, estava quase crescido, uma menina chamada Paula me disse: “você é um garoto simpático, e mais nada.
Entre aborrecido e contente pensava no “mais nada”. Talvez fosse melhor que ser simpático; nada impressionante.
Pobre moça. Vivia escondendo sua feminilidade com tenizões, camisas estampadas e jeans.

Coitada.

começo a ter pena dela, talvez quisesse ser outra pessoa
Sentir de outra maneira, pensar outra coisa…
Um lugar estranho a sedução
Sempre tive esse sonho: ser sedutor
mas Como? Cheio de pêlos nas costas.
Arrancaria um por um se fosse possível
Eu vivia de camisão para esconder minha masculinidade.

Começo a ter pena de mim pra mim.

Sempre tive esse sonho: um lugar escuro, desconhecido. Lá não se sabe o que se pode achar. Inconsciente de meus atos. Sempre acordava do mesmo jeito
Com o mesmo livro aberto na mesma página. Não sei o que está escrito naquela página, normalmente, só me recordo da capa.
Ao acordar, folheio o livro… sempre no canto direito da página não consigo me lembrar do número.
tem uma marca de caneta, um simples traço ininteligível; olhando para todos, apenas formam um grupo de traços desconhecidos entre si. Ninguém sabe para que servem, nem para onde vão. São só traços. desprovidos de elo-elo-elo
Mas o nome do livro (esse sim) pode ajudar em alguma coisa: os prêmios, algo assim

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Transtornos Neuróticos Contemporâneos

Semanas esperando
Um curso de sábado; nunca imaginei tamanha ansiedade.

No dia de realizar meu desejo, há tanto incubado, acordei 10h da manhã. A contação de histórias começaria 14h, não precisa dizer que é da tarde, né? isso mesmo! era um curso para aprender a contar histórias, e a ouvir também. Mas não pense que era um curso clandestino, para mentirosos, estelionatários, ou algo assim; pelo contrário, era um aprendizado de vida – vivida e vivenciada.

Passei noites em claro, confabulando: o que diria? qual história contaria? como me comportaria? será que gostariam de mim? da gola do meu vestido? (essas ocasiões pedem gola, e das grandes) e do meu cabelo? Acho que dei uma exagerada no laquê, é, uma levíssima exagerada.

MEUS DEUSES DOS CÉUS!
O relógio marcava 13h.
Fiquei com os movimentos desarticulados. Estava atrasada!

Comi rapidamente, coisa que não estava acostumada, um macarrão alho e óleo, eis outra coisa incomum, pelo menos para mim. Consegui a receita com uma amiga, que ao ditá-la, confessou o tal segredinho, aquele que existe em qualquer culinária. Para ficar perfeito, no ponto… muito óleo, ou muito alho? Por via das dúvidas, usei muito dos dois.

Sai correndo, nem assim. Correndo, esbarrando, suando desengonçada, atropelando transeuntes alheios…

Cheguei quase 1h atrasada. Que vergonha!
Acomodei-me em uma cadeira na última fileira.

30 min depois, meu estômago começou a reivindicar existência.
Como se o houvessem engravidado dois monstros fantásticos, ele se remexia, se contraia, se tremia espasmodicamente…

Aguentei essa luta mediúnica sabe-se lá quanto tempo. Mas fui valente, forte, inteligente, despudorada… é despudorada! Pois, vagarosa e elegante, corri para o banheiro. Fiz isso barbaramente decidida!

Chegando ao jardim das delícias, quase um lapso de orgasmo, a não ser pela triste verdade: as duas únicas cabines estavam ocupadas.

Me remexi, me contrai, me tremi.

Quanto mais eu rezava, tanto mais a fila atrás de mim crescia; brotavam mulheres por todos os lados, quase uma procissão improvisada (claro que se outras estivessem rezando, talvez até estivessem, por motivos diversos, dos quais jamais saberemos).

Os monstros do estômago ainda guerreavam bestiais.

Finalmente, uma senhora saiu do banheiro e disse “não tem papel!”

Olhei estarrecida para os lados, mexendo a cabeça num ritmo descontrolado, e percebi aquele maravilhoso papel lixa de secar as mãos. É isso!

Entrei na cabine como quem descobre o sentido da vida. Descarreguei toda minha consternação, sem me preocupar o quanto esse despertar de uma nova vida seria inoportuno. Frente à irrelevante platéia, deu-se o legitimo Nirvana, acessível, aflito, malcheiroso!

A pior desgraça estava por vir, porque a senhora mensageira do papel esqueceu-se de avisar sobre a falta d’água. (AAAAAAH!!!!)

Despencando em meio a assuntos femininos e risinhos extrovertidos, retirei leite da pedra, pois em abrangente meditação, consegui um último e tímido esguichinho.

A tampa estava fechada, recorri a todos os santos e também aos deuses que tinha apelado antes, mesmo tendo eles sido bastante ingratos.
Por favor, rogai por mim, crente pecadora! levem essa maldita escultura de barro falsificado.

Quando tive a coragem de abrir…

Lá estava ela, uma bolinha abastada, rebelde e cheia de si mesma.

SIM! VOCÊ saiu vitoriosa!

Só não lhe disse umas boas verdades, porque minha situação ficaria ainda pior: a coisa estava preta, definitivamente, não cheirava bem.
Com o gritinho de agora pouco, já ouvia dissonantes comentários. (Tá bem! Não foi tão gritinho assim; vamos, cortem minha cabeça, acabem logo com isso!)

Precisava pensar em outra saída, outras possibilidades.
Deixar aquela bolinha ali, fora de cogitação.

Pensa; Pensa; Pensa. (Todos os meus pensamentos foram despejados).

Pegue-a.
Sopraram no meu ouvido. Não sei de onde veio esse impulso – eu juro!

O câncer se apossava de todo meu corpo. Precisava sair dali, daquele buraco, daquele antro fétido de excretas.

Distraidamente, começava a ver flores multicoloridas, suculentas, exalantes de um aroma a dama da noite. Um alivio, estranho abismo da imaginação.
Sentia-me debruçada em uma janela sem vista; enxergava madeira maciça, uma porta fechada para o mundo, que corria despercebido.

Imbuída num desespero enraivecido, fora desse corpo, acertei a mão delicada na afável lixeira, para resgatar meu próprio papel, afinal, era meu, e eu não poderia investir nessa empresa de mãos abanando.

E foi assim: com meu próprio papel, tentei agarrar minha própria bolinha.

NÃO!

Ela se desfaleceu, multiplicou-se claramente e revidou: “Somos todas parte de você, mulher despudorada!”
Aquela bola de merda!

“VAI TOMAR NO CÚ!” Respondi a altura da baixaria.

Derrotada…. procurei me recompor. Sem tocar em mim, é claro!
Levantei o olhar de mulher despudorada, sai da cabine e elegantemente avisei à seguinte:

“Cuidado! Está sem água”.

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Donas Flores falava mais que a mulher do leite

Despertou. Suspiro profundo deitado na grama fofa e aveludada. Vestia um terno de pétala de rosa branca. Lugar estranho, nunca havia estado ali. O paraíso extasiado. Durante algum tempo não conseguia lembrar o próprio nome, nem como tinha chegado. Agonia de grandes espessuras.

A paisagem um lago cristalino repleto de peixes coloridos. Águas rodeadas por árvores frondosas, aroma magnífico de flores. A brisa embalava pétalas dançantes.  Sentia-se pleno, sensação que jamais experimentara em vida. O chão inspirava frisos veementes de tapete multicolorido, cogumelos de bolinhas brilhantes e plantinhas rasteiras deliciosas. No céu voavam borboletas num balé esquisito, líricos pássaros. Cisnes tocando flautas suaves a música celestial. A harmonia se faz paixão,  perfeita e milagrosa enchia os olhos.

Teve o ímpeto de olhar para um ponto fixo no meio do lago. A hipnose deixava-o alheio à voluntariedade de seu corpo. Mergulho aguçado em si mesmo. A água do lago começou a agitar-se como se uma criatura gigantesca fosse emergir a qualquer momento. Os olhos esbugalhados, o peito sem ar, estalo…

Uma mulher belíssima rebentou das profundezas das límpidas águas, o vestido de voal dava-lhe o mistério da silhueta, margaridas enovelavam os cabelos selvagens. Pureza e poesia. Cintilância de Deusa. Vênus ensolarada…

Ele levantou-se de um pulo, já não tinha mais medo ou receio…

Vontade Desejo Necessidade

Atravessou angelical até a margem, ergueu o braço direito e as mãos encontraram-se. Deram um abraço apertado revigorando um sentimento confuso de saudade. As águas brilhando a eloquência dos amantes, a delicadeza do encontro. O casal dançou uma música interior que ouviam no mesmo compasso. Extremos à luz do amanhecer. Imensos. Seus corpos numa bolha furta-cor reluzente, os pés descalços e leves como pluma. Flutuavam inebriados e fluidos por amor inconsumível.

 

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A vertigem por um fio em espiral

Sempre chego à escola no mesmo horário.

Sento no meu banquinho, beirando a fonte dos prazeres onde ele se debruça, matinalmente, feito um ritual.

Sei bem que ele vai passar.

A qualquer momento eterno, para se banhar de uma água rápida que inunda.

De rabo de olho, capto um milhão de imagens da gota que escorre lúcida.

Se tremo? Não sei, mas chego a ficar anestesiada.

Obvio ninguém percebe porque a conversa flui normalmente. Não mudo nem a expressão, ganho uma capa, um revestimento de cera, o rosto assume uma feição inteira, inesgotável.

O momento é engraçado, como se tivesse que assumir dois corpos: são dois, que se complementam, se dissipam, seguem opostos, retornam e me fundem.

A cabeça até apita!

Final de semana? No caminho frenético do real ao imaginário,digo sim, digo não.

Minha fantasia não era prêmio de se dividir com ninguém…

O sino badalou três vezes. Cada som de alerta me deixava à espreita. A lei imposta era: tentar a qualquer custo roçar os cotovelos. Com passos sincronizados ultrapasso barreiras de gente. Intacta, calculo milimétricamente e entro com toda força na ressaca de ossos sedentos, estranhos, mas que se entendem pelo toque,quase artificial.

A cadeira da frente era grafada com a marca da minha ambição, aquela terra era minha, foi lá que conheci o mundo e me curvei a ele. Talvez não possa ser meu! Mas preciso existir me materializar. Dar um jeito de tocar a testa dele e aparecer, é pura física, lei das possibilidades.

Um belo dia quando a monotonia tomou conta de mim, sentada no vale da expectativa desmedida, só buscava a face do tempo em que tudo andava devagar, perceptível, insolúvel.

Numa fração obscura, o adesivo da caneta pregada entre meus dedos incomodou. Estava obstinado a tomar aquela ânsia de acontecimentos para si, grudava e repuxava os pêlos invisíveis, reivindicando existência. Com desdém arranquei o adesivo inconveniente. Quanto mais tentava me livrar, mais se aderia à ponta de meus dedos.

Em meio àquela luta interna, a sala começou a se movimentar e preencher seus lugares, como num aviso de alerta: “Ta na hora.”

Já ultrapassava a porta com olhar compenetrado, assim, livre de julgamentos.
Sentei-me corretamente, meus olhos logo mudaram de rumo para iludir indiferença.
Ele, nervoso, deixou cair o apagador, uma nevoa densa veio de encontro a mim e um espirro ensurdecedor saiu descontrolado.

Apertei o nariz da vergonha para que não se repetisse. Com uma delicadeza espontânea, ele me olhou desejando saúde.

Para agradecer sorri e senti alguma coisa colada em meu nariz.

“Como assim?”

Minha mão involuntariamente tocou uma coisa gosmenta que meus olhos alfinetaram. Foi minha pena de morte.

“Uma meleca!”

Durante um segundo, pairou este pensamento. Num outro flash brotou a caneta e o maldito adesivo que foi um intruso em minha vida.

Devo ter ficado horas trabalhando ele, enrolando…
Fazendo-me inteira com a visão do céu e caindo direto no inferno.

“Que ótimo!”

E ele de costas, provavelmente, estava rindo com seus pensamentos:

“Que meleca enorme”

Tava escrevendo até mais lento.

“E essa coisa? Será que ponho no chão? Me larga!

Se bem que… abaixar vai ser terrível.

A cadeira… cruzes!

Que nojo!

Pêra ai? Garota, você ta ficando doida é só uma bolinha verdinha de cola.

“Nossa, mas como lembra uma meleca!”

Ai, ele virou de novo para mim, deu o sorriso mais lavado do mundo, despudorado.

Fiquei com as mãos aparentes e comportadas.

Não podia achar que dispensei a prova do crime na cadeira ou na mesa, seria um cataclismo. Precisava ficar firme só mais umas duas horas, talvez menos, talvez mais.

“Eu aguento!”

E se eu fosse ao banheiro? NÃO!

Ai ele vai achar que meu nariz está imundo há horas e eu não tive a coragem de limpar.
Melhor ainda, tenho certeza de que não viu a meleca…

Pior é que com certeza viu!

“Calma só mais duas horas”, meditava incansavelmente.

Já cansada daquela situação nojenta, tive uma grande idéia: colocar a carrasca bolinha na folha do caderno.

“É TUDO!”

Isso! todo mundo mexe no caderno na sala, não esfrega a mão na mesa, nem na cadeira, mas no caderno…

Meus dedos foram autônomos, como se estivessem caminhando rumo ao pôr do sol, em total sincronia.
No meio da discreta folha branca, brotou uma coisa gigantesca que esmaguei impiedosamente com a capa do caderno. O terremoto estrondoso chamou a atenção geral.

Havia um tempo em que não estava ali e agora estava.

Ele se aproximou lentamente com ar de desaprovação, meus olhos se lubrificaram de vergonha.

Segurou o caderno, eu agonizei.

“Para, pelo amor de deus!” Supliquei em silêncio.

Tentei me manter calma e disse para ele ter calma,
enquanto abria a capa do caderno e retirava uma folha, a folha…

“Essa não!”

Gritei no vácuo, dava passos e mais passos para escuridão no abismo da loucura.

Cada furo que se soltava do espiral me embriagava de vertigem.  Tudo ficou preto, não sabia se era sonho ou verdade.

Acordei em um lugar todo branco, iluminado, impregnado com um leve cheiro a formaldeído.

“Será que morri?”

Logo veio um homem todo de branco perguntando se eu estava bem, se era a primeira vez que isso acontecia.

Respondi que sim.

Bem,

pelo menos fui para casa e nunca precisei saber o que aconteceu realmente.

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olhar da lavoura arcaica


no jardim, as jasmins-manga exalavam um cheiro da infância que vivemos naquela casa. A festa reunia a todos; vizinhos, criados, primos distantes. A ciranda rodava para os dois lados, as pessoas não ficariam tontas com essa ciência milenar. Os músicos empolgados tocavam acordes embalados pelo corpo dançarino aquecido pelo instrumento. As mais velhas chegavam com travessas gigantescas, ostentando pratos coloridos dosados pelos mistérios de caldeirões enfumaçados, que os homens jamais poderiam chegar perto enquanto seu preparo. O patriarca sentava-se numa cadeira de vime real, estava sempre ereto e imponente, como se o tempo lhe pertencesse e nada pudesse lhe fazer de mal.

Ela rebentava no meio da roda de gente como fosse uma rosa que nasce da pedra, todos ficavam enlouquecidos com seu sopro de vida. Serpenteada e multiforme. Esfinge esperando ser decifrada, galgando nos passos da dança seu enorme misticismo… e eu, pés descalços, sentado a um canto, olhar arredio, roupas rotas e cabelos desdenhados, e eu… nada
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GOELARDENTE

 

goelardente goelardente goelardente goelardente goelardente

Um hotel de infinitas facetas
corredores ignorando horizontes
Cada canto um arranjo peculiar
Chão de rabo de pavão, paredes discotecadas, aromas afrodisíacos exalados por plantas exóticas e tropicais, carros alegóricos com pessoas cristalizadas, lantejoulas, boás, bolhinhas de sabão, quitutes da casa da vovó, barmans gregos, nus, ostentando suas oceânicas serpentes numa bandeja servindo drinks caleidoscópios em vidros coloridos.

Lá fora era só neve, tanta, que a paisagem era uma fotografia em papel couché branco brilhante – ruína da história que se passara.
Para mim ainda não há passado
Confinei-me a viver para sempre, ali
isso…
se a reinvenção de algo que nunca vai deixar de ser
existir realmente

Jofrey, por favor:
um drink no inferno.

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